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Agora vemos por espelhos [II] 12 março, 2012

Posted by Alysson Amorim in Uncategorized.
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Publicado originariamente em  05/11/2010

Há cinco anos visitei uma exposição de cartas cartográficas e a única alusão feita à cartografia medieval era uma máxima consignando a sua inexistência. Mapa algum; é dizer, concessão alguma às crendices que semeavam monstros nas distâncias oceânicas; espaço nenhum ao obscurantismo de quem desenhava cartas sem o rigor do método. A cartografia moderna varrerá literalmente do mapa todo monstro e toda invencionice artística. É uma limpeza, por óbvio, que não se restringirá ao domínio da confecção de mapas.

No processo de desencantamento do universo iniciado pela ciência moderna o estatuto especular das coisas será reduzido a estilhaços. Gradualmente vai perdendo espaço as concepções que sustentam que as coisas remetem. Talvez mais adequado seja falar não em estilhaçamento do espelho (esse objeto que não se cansa de nos assombrar), mas em seu deslocamento da estrutura das coisas para a estrutura dos instrumentos que dissecarão metodicamente as coisas (o telescópio de Galileu é um acabado ícone da modernidade).

Por confessa inaptidão, evitarei transitar aqui pelos terrenos ardilosos dos juízos de valor, e ficarei apenas com uma nota que temo pecar por sua obviedade: toda época histórica é um corpo crivado por ambiguidades, e todo juízo de uma época por outra está condenado aos rasgos das afiadas paixões. Não é diferente com a Idade Media, uma época de negruras e cores vivas, de analfabetismo generalizado e livros que tudo abordam; não é diferente com o juízo que a Idade Moderna fará dos medievais, que dá a ideia de um Sol onipotente julgando e condenando todas as trevas, sem descuidar de afirmar sua auto-suficiência e completude (há, claro, os outsiders pessimistas, como o Cândido, de Voltaire, que transitam por aí apenas para nos confirmar a regra).

Se a Idade Moderna rompeu, entre outras, com a já mencionada lógica agostiniana de que também os monstros (também as rígidas estruturas sociais e as atrocidades delas decorrentes) são parte da ordem providencial da natureza, ela tampouco deixou de forjar suas particularíssimas opressões. Uma delas (a que nos interessa aqui) é a conjuração do que há de insidioso e terrível nos espelhos. Para levar adiante a urgente tarefa de domar a natureza já não era dado aos homens ver “como por espelhos”. Isso implicava, no plano epistemológico, a exigência de uma separação radical entre sujeito e objeto. Ao sujeito cumpre fisgar e domesticar o objeto, e portanto esvaziar o mistério e o terror nele aninhados; esvaziá-lo, em uma palavra, de sua sacralidade.

O processo de esvaziamento da sacralidade dos objetos, vale mencionar, não escapou ele mesmo de profundas ambivalências: se foi decisivo para o desenvolvimento da ciência e para a melhoria das condições gerais de vida do homem, não foi menos fatal no desencadeamento da atual crise ecológica e no esgotamento da racionalidade científica, tragicamente entrincheirada entre as muralhas alienadoras da especialização.

Não é de ignorar a grande ironia do antropocentrismo moderno: ele tencionava levar o homem ao centro, ao espaço amplo da liberdade e da possibilidade de diferenciação (e sua carta de princípios exibia gente de engenhosidade escandalosa como Leonardo da Vinci), mas atabalhoadamente precipitou-o na senzala da uniformidade (no escritório árido do especialista). Vale aqui, talvez, a máxima desconcertante de Riobaldo: “querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar.”

A racionalidade científica moderna nos conduziu, na sugestão de Edgar Morin, a um neo-obscurantismo, provocado pela radical especialização dos saberes, cenário em que os especialistas estão condenados a pensar a partir e nos limites de seus guetos, e os não-especialistas recusam-se à reflexão, amparados na alegação de que semelhante tarefa é incumbência dos especialistas. O que norteia toda a obra de Morin é o esforço de reintroduzir a auto-reflexão e a auto-crítica na relação do sujeito com os objetos. É restaurar nos objetos alguma superfície especular, é encontrar uma prática científica que não se restrinja a meros enunciados e experiências, que não mantenha a cisão radical entre sujeito e objeto levada à cabo pela modernidade (cisão que, no fundo, expressa outra, ainda mais trágica: a separação no destino das ciências naturais e das ciências humanas).

*****

Ao sugerir que nossa compreensão do universo e das verdades divinas está sujeita aos ardis especulares, Paulo recorre a uma metáfora comumente utilizada pela tradição judaica. David H. Stern cita em seu Comentário Judaico do Novo Testamento uma passagem do Talmud que teria influenciado o apóstolo:

“Abaye disse que o mundo contém 36 homens justos, mas Raba disse 18.000. Não há contradição – os 36 vêem o Santo, bendito seja ele, em um espelho polido, enquanto os 18.000 o contemplam em um turvo. (Sanhendrin 97b, condensado)”

O apóstolo está seguro de que somos vítimas fáceis das ilusões que os espelhos animam – e assim, a primeira ilusão que nos cabe esconjurar é a de que é possível ver as coisas com absoluta clareza, ver o mundo com impoluta objetividade. Paulo retornará obsessivamente a variações desse tema: “em tudo somos (…) perplexos, mas não desanimados”, “ninguém se iluda (…) a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus”, “quando estou fraco, então sou forte.” Não é bastante lembrar que essa intuição pré-moderna do judaísmo, que esteve viva em suas formas particulares durante todo o medievo, será denunciada como obscurantista pelos modernos, e as razões de semelhante querela já devem estar suficientemente elucidadas. O avanço da ciência moderna exigia trânsito em terreno menos movediço.

Com o advento da ciência moderna e de sua nova epistemologia, a compreensão pré-moderna das verdades divinas, e em particular a leitura alegórica das Escrituras, cairão vítimas de uma rotura significativa. Como esclarece com lucidez Peter Harrison, a modernidade converterá a leitura dos textos sagrados em prática científica, submetida aos enunciados da pesquisa histórica e ao encalço do sentido literal dos textos, e restrita – como sempre – aos especialistas. É assim que emerge do mar aquela grande e irônica besta: a leitura reformada de Paulo esforça-se por exorcizar, antes de qualquer coisa, a insidiosa epistemologia especular proposta pelo próprio Paulo. A lógica adstrita a essa leitura é a de que nenhuma autoridade (e para os reformados, uma suposta interpretação correta das Escrituras é a suprema autoridade) pode subsistir lançando seus fundamentos na areia. E é uma lógica acertada.

Para além desta abordagem mais imediata do videmus nunc per speculum (a de que ver por espelhos é ver com pouca clareza) outras, mais ousadas, foram catalogadas por Borges em um pequeno ensaio sobre Léon Bloy, El espejo de los enigmas. Léon Bloy era, para a surpresa de Borges, a um só tempo católico rigoroso e heresiarca.

Bloy fala ali do universo como uma claraboia que nos faz submergir ao verdadeiro abismo – a alma do homem; fala de “invertir nuestros ojos y ejercer una astronomia sublime en el infinito de nuestros corazones”. Aposta que se a Via Láctea existe, é porque ela existe primeiro em nossa alma. Esse impulso pré-moderno de inverter nossos olhos, de exercer uma astronomia interna (enfim, de enxergar o universo não apenas como um objeto a ser conhecido e manipulado) mas também como uma realidade que remete para além de si – e é por isso mesmo sagrada, renascerá no século 20, seja através da psicologia profunda, da consciência ecológica ou das mais variadas reações no sentido de recuperar “a humanidade da humanidade” (que inclui, na proposta de um Morin e de um Jung, clarificar a existência do obscuro em nós, do demens no sapiens). Quando ousarmos olhar “como por espelhos” descobriremos que o tumultuoso universo, na provocação de Morin, criou-nos à sua imagem.

Não apenas não enxergamos com clareza as verdades divinas, como estamos radicalmente incapacitados para ir muito além na compreensão mesmo de nossa própria natureza (e talvez não haja grande diferença entre uma coisa e outra).

Em outro momento de felicidade, León Bloy fala da vertigem que os espelhos provocam. Ver por espelhos é ver tudo ao contrário. “Cuando creemos dar, recibimos, etc. Entonces (me dice una querida alma angustiada) nosotros estamos en el cielo y Dios sufre en la tierra.” Talvez o apóstolo pensasse exatamente nisto ao falar de amor e logo depois de espelhos.

Agora vemos por espelhos – ou neste mundo, como sugeriria ainda Riobaldo, tudo é e não é.

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